quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Série "Posts Roubados" - 2

Essa vem do Escrevinhador:

Como neto de desaparecido político e filho de preso político, assino embaixo...


Os cafajestes não querem a Comissão de Verdade

publicada terça, 12/01/2010 às 12:44 e atualizado terça, 12/01/2010 às 12:59

Numa atitude cafajeste, alguns setores da sociedade brasileira apresentam a “proposta” de – ao se instituir uma Comissão de Verdade sobre a ditadura – investigar-se “os dois lados”.

Não faz o menor sentido.
É como se, ao fim do nazismo, alguém propusesse: “ok, vamos investigar os carrascos, mas é preciso levar ao banco dos réus também os judeus que resistiram ao legítimo regime nazista”.
Estou a exagerar? Não creio.
Os militantes de esquerda já foram punidos: alguns julgados, muitos presos e torturados, vários executados, encarcerados.
Falar em “investigar os dois lados” é torturar de novo os que sobreviveram, é torturar a memória dos que se foram.
Isso é cafajestagem. Não há outro nome.
É preciso investigar os que seguem impunes. Assassinos e torturadores.
A Justiça poderá puni-los? Talvez. Mas o principal é estabelecer a verdade. O resto é consequência.
Respeito aqueles que – como o professor Paulo Brossard, por exemplo – manifestam sua opinião contra a revisão da “Lei de Anistia”. Ex-ministro, humanista, Brossard não apela para a cafajestagem. Ele acha que a lei é fato consumado e que impede punição aos que atuaram na ditadura.
Humildemente, eu que não sou jurista, mas já entrevistei muita gente sobre esse assunto, gostaria de lembrar: a “Lei de Anistia” não precisa ser abolida para que a Comissão de Verdade se estabeleça.
A Comissão não vai punir ninguém. Vai, simplesmente, fazer um relatório oficial – conduzido por representantes da sociedade, mas com aval do Estado brasileiro – sobre as atrocidades cometidas por agentes do Estado durante a ditadura. A Comissão vai dizer: “fulano foi preso em tal circunstância, foi preso em tal instalação militar, torturado sob as ordens do comandante tal e qual, desapareceu no dia tal, sabe-se que o corpo foi levado para tal vala comum etc.”
É uma satisfação às famílias. É um acerto de contas com a memória do país.
Na Argentina, no Chile (e também na África do Sul, ao fim do Apartheid) comissões desse tipo se estabeleceram.
No Brasil, o Estado omitiu-se. Coube a Dom Paulo Evaristo Arns (então arcebispo de São Paulo, até hoje detestado por parte da elite brasileira, por ter-se posicionado contras as violações e abusos) comandar a investigação que resultou no relatório “Brasil, Nunca Mais”.
Não foi o Estado que fez a investigação. Mas um grupo da sociedade civil. Sem acesso a arquivos, com todas as limitações que se possa imaginar.
O Estado brasileiro precisa prestar contas do que se passou.

As Forças Armadas, inclusive, não merecem carregar esse fardo do passado. Sem dar nomes, sem um acerto de contas, o passado vai voltar a assombrar o Brasil e os militares (e a imensa maioria deles não tem responsabilidade pelos atos cometidos durante a ditadura).

A Comissão é necessária, é justa, está baseada em boas experiências internacionais.
Não há nada de "revanchismo" nisso. Revanchismo seria pegar os torturadores e pendurá-los no pau-de-arara, ou arrancar-lhes as unhas e dentes. Não é isso que se propõe. Mas um acerto de contas civilizado.
Pode-se entender, ao fim de tudo, que não se poderá punir ninguém. Essa é outra discussão, que se dá no STF.
A OAB entrou com uma ação, pedindo que o Supremo decida: torturador pode ou não ser punido? A Lei de Anistia protege os torturadores?
Há quem entenda que não. O argumento é o seguinte: tortura é crime contra a Humanidade, imprescritível, e o Brasil assinou tratados internacionais nesse sentido; portanto, Lei nenhuma pode valer mais do que tratados internacionais.
O STF vai decidir.
Enquanto o STF não decide, algumas famílias usam uma estratégia inteligente. A família Teles, por exemplo, entrou com uma ação declaratória, na Justiça, pedindo que o coronel Brilhante Ustra fosse declarado responsável por torturas quando comandou DOI-CODI em São Paulo. O juiz, em primeira instância, deu ganho à família.
Vejam: é uma ação cível. Não se trata (por hora) de punir Ustra (até porque ele poderia trancar a ação usando justamente a "Lei de Anistia").
O texto sobre a vitória contra Ustra foi o primeiro a ser publicado nesse blog. Sinto orgulho de ter divulgado a informação, em primeira mão, como se pode ler aqui - http://www.rodrigovianna.com.br/plenos-poderes/justica-reconhece-que-ustra-torturou.
Imaginemos que o STF entenda que torturador não pode ser punido penalmente. Seria lamentável. Mas teríamos que respeitar.
Ainda assim, a Comissão de Verdade poderia concluir seu trabalho. E, ao final, dezenas de “ações declaratórias” (como a ajuizada pela família Teles) poderiam ser abertas, com base no relatório da comissão.
As famílias têm sido ignoradas pela grande imprensa no Brasil. Os jornais estão ocupados em fustigar o presidente Lula - acusando o governo de “revanchismo” nesse episódio.
Entidades que representam as famílias lançaram uma carta, no fim do ano, no Rio. É uma espécie de roteiro para que a Comissão da Verdade funcione bem. Publico o principal trecho, a seguir ....
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Carta da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, GTNM/RJ (Grupo Tortura Nuca Mais - RJ)e Cejil
"(...) Uma Comissão de Verdade deve ser efetiva, autônoma, independente e justa.
Os elementos considerados fundamentais para garantir tal instituição são os seguintes:
1. Funções
O trabalho de uma Comissão da Verdade deve servir a três funções fundamentais:
- ao esclarecimento dos fatos,
- ao reconhecimento moral e ético das vítimas e,
-a apresentação de recomendações de políticas que garantirão a não repetição das violações de direitos humanos.
2. Competências
As competências devem estar claramente definidas, de forma ampla o suficiente para refletir os direitos das vítimas.
2.1. A Comissão de Verdade deve ter competência material para analisar as mais graves violações aos direitos humanos, de acordo com o Direito Internacional, assim como os crimes de ocultação e omissão dos fatos violatórios, como ocultação e destruição de arquivos, ocultação de cadáver e outros.
2.2. A Comissão de Verdade deve ter competência territorial para analisar todos os crimes cometidos no território brasileiro, bem como aqueles crimes cometidos em outros países, cuja ação contou com a colaboração e contribuição de agentes públicos ou privados a mando do Estado brasileiro.
2.3. A Comissão de Verdade deverá ter competência temporal para aqueles crimes cometidos durante o período de 1961 a 1985.
3. Prerrogativas
A Comissão de Verdade deve apurar toda a verdade, o que abarca os fatos, as circunstâncias, o contexto e as responsabilidades.
É necessário que a Comissão tenha o poder de apurar toda a verdade sobre o período da ditadura, sem restrições, incluindo a possibilidade de recomendar às autoridades competentes a investigação criminal contra supostos perpetradores.
A Comissão deve ter a possibilidade de nominar responsabilidades institucionais e individuais presumidas, inclusive o nome de perpetradores. Assim mesmo, deve garantir aos mesmos o direito de resposta e defesa, bem como a possibilidade de entrega de informações adicionais.
3.1. A Comissão de Verdade não deve substituir os atos de justiça.
Os direitos internacionais das vítimas incluem o direito à verdade, á justiça e à reparação. Assim, a Comissão deve auxiliar no cumprimento do direito à verdade, não podendo substituir ou debilitar nenhum outro mecanismo ou ação de recurso aos direitos das vítimas.
Em particular, a criação de uma Comissão de Verdade não deve reduzir a obrigação da União de cumprir efetivamente com seus deveres resultantes de obrigações internacionais, como por exemplo, sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
3.2. Respeito às autoridades judiciais.
O trabalho da Comissão de Verdade não deve contrapor-se à justiça e, ao contrário, deve contribuir e encaminhar às autoridades judiciais, auxiliando na instrução de eventuais inquéritos e sua efetivação.
3.3. Inaplicabilidade da Lei de Anistia.
Os trabalhos da Comissão não serão afetados pela Lei de Anistia (Lei 6.683/79), uma vez que não possui característica de juízo penal.
Do mesmo modo, deverá ser assegurada à Comissão da Verdade a possibilidade de encaminhar as informações resultantes das investigações ao Ministério Público.
3.4. A Comissão de Verdade deve ter total publicidade e transparência.
A Comissão deve ter o poder de realizar audiências públicas com ampla difusão na mídia (incluindo, necessariamente, as TVs Públicas), fornecendo publicidade e condições para o testemunho livre e voluntário das vítimas. Tais testemunhos devem ser realizados sob condições adequadas de acompanhamento psicológico e de segurança pessoal. Ao mesmo tempo a Comissão de Verdade deve levar a cabo procedimentos confidenciais se assim ficar decidido, para garantir a segurança das vítimas e testemunhas.
4. Estrutura
Constitui boa prática um processo consultivo permanente e transparente, contribuindo com a legitimidade e êxito de uma Comissão de Verdade desde o seu estabelecimento, desenho e implementação por meio de consultas amplas à sociedade civil organizada e às vítimas.
O processo de escolha dos comissionados deve ser aberto, transparente e consultivo, garantindo que eles sejam avaliados por sua trajetória, experiência, independência e qualidades éticas. O processo de escolha deve ser público, tal como em um concurso, no qual o candidato a membro da Comissão se apresente por meio de um memorial e defenda sua candidatura perante uma banca formada por pessoas de reconhecida formação e atuação na defesa dos direitos humanos.
8. A Comissão de Verdade deve ser assessorada por um Comitê da sociedade civil.
As organizações da sociedade civil e das vítimas devem compor um comitê formal e efetivo de observação, acompanhamento e assessoria da Comissão de Verdade.
Considerando que a ditadura militar brasileira produziu efeitos em todo o país, o Comitê deve refletir a diversidade nacional e sua pluralidade.
5. Recursos Adequados
A Comissão precisa ter uma estrutura própria, com recursos humanos e materiais. Isto inclui a autonomia da Comissão em contratar suas equipes de trabalho, dotando-a de orçamento independente. Deve-se solicitar também recursos suplementares de instituições e fundações internacionais independentes, aumentando ainda mais a autonomia de atuação da Comissão.
6. Poderes atribuídos à Comissão
6.1. Reais poderes de investigação
Deve ser assegurado acesso aos arquivos do Estado, incluindo os arquivos das Forças Armadas, e o poder de convocar as pessoas envolvidas com estas informações e de visitar os locais onde se encontram os arquivos.
6.2. Poderes de proteção.
Deve ser assegurada proteção para testemunhas ou para aqueles que apresentem documentos e informação.
6.3. Autoridade para publicar
Deve ser assegurada a publicação nacional e internacional das conclusões dos trabalhos e recomendações da Comissão a partir de seu relatório final, assim como versões populares divulgadas nas rádios e televisões.
6.4. Imunidades
Os comissionados devem ter imunidade funcional e garantias de segurança pessoal para cumprir o seu mandato.
7. Seguimento dos trabalhos e implementação das recomendações
7.1. O Estado deve analisar as conclusões e as recomendações dos relatórios da Comissão de Verdade e respondê-los formalmente. Esta resposta deverá ser realizada ante uma instância importante dentro da estrutura estatal, tal como o Congresso Nacional, perante o qual o Estado deverá responder às recomendações da Comissão de Verdade, apresentar um programa para efetivar seu cumprimento, ou bem apresentar as razões e argumentos para não implementar imediatamente alguma das recomendações.
7.2. Os arquivos da Comissão de Verdade devem ser protegidos e disponibilizados para vítimas e para às instância judiciais.
7.3. Deverá ser criada uma instituição de seguimento dos trabalhos da Comissão de Verdade, a fim de atender as necessidades das vítimas e para que quaisquer pendências dos trabalhos que possam ser solucionadas.
7.4. O Estado deve garantir que os resultados da Comissão de Verdade sejam adequadamente incorporados no currículo educativo para que as novas gerações conheçam a verdade histórica sobre a ditadura militar.
Acreditamos que estes são pontos fundamentais para a garantia de uma real apuração da verdade, sem os quais a eficiência e a independência da Comissão de Verdade estariam completamente prejudicadas.

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